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“Vermes de corda” não existem, logo não causam autismo
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A comunidade formada por pais de portadores dos chamados transtornos do espectro autista – além dos portadores em si – é alvo constante do assédio de pseudociências, promovidas tanto por charlatões quanto por figuras que se acreditam bem-intencionadas. Artigo publicado em 2017, no periódico Autism Research, já chamava atenção para o fato e atribuía o problema, entre outros determinantes, à “complexidade dos perfis clínicos (…), ausência de um teste diagnóstico definitivo e de uma causa conhecida”.
Esse caráter misterioso e aparentemente arbitrário do autismo – tanto em sua origem quanto no desenrolar individual de cada caso – oferece terreno fértil para falsas “curas” mirabolantres e, também, para “explicações” espúrias das causas do transtorno.
Já alertamos, por exemplo, para o perigo que a chamada Solução Mineral Milagrosa (MMS) representa, principalmente para as crianças.
Isto, no lado das falsas curas. No das causas espúrias, vêm circulando nas redes sociais brasileiras relatos sobre supostos “vermes” que provocam o autismo. Há diversos grupos no Facebook onde se publicam fotos que seriam dos tais vermes, e pessoas relatam que seus filhos foram “curados” do autismo. Em um desses grupos, encontramos a seguinte mensagem:
“Os últimos 12 anos de investigação sobre os Rope Worms (parasitas em corda) foram apresentados. Eles foram descobertos pelos pesquisadores Dr. Nikolai Gubarev, da Rússia e Dr. Alex Volinsky, dos EUA, que estima que cada ser humano pode estar infectado com algum tipo de Rope Worm“.
A partir de agora, vou descrever como foi meu processo de verificar que essa é uma fake news (“o MMS consegue curar o autismo, câncer, malária…”) misturada com false news (“cientistas descobrem que…”) e ciência de má qualidade (ato de má conduta científica deliberada dos pesquisadores envolvidos no estudo).
Pra dar uma passada rápida nos conceitos: uso “fake news” para me referir a conteúdo que finge ser notícia, mas na verdade não foi produzido por nenhum órgão sério de imprensa e nem pretende contar um fato verdadeiro: algo criado com a única intenção de enganar as pessoas. Já “false news” é a notícia dada de boa-fé, mas que contém inverdades, seja porque o autor foi enganado, enganou-se ou não entende patavina do que está falando. E má conduta científica é isso mesmo, picaretagem feita por cientistas. A ciência também sofre com sua carga de picaretas embarcados, assim como todas as atividades humanas.
A fake news ficará clara na conclusão do texto (espero), portanto seguirei a ordem da pesquisa no Google que fiz ao me deparar com a tal frase sobre a prova científica dos vermes. O método pode ser repetido pelo leitor interessado. O resultado deve ser o mesmo.
A primeira dica é o nome dos vermes: “Rope Worms“. Não tinha visto o nome dos parasitas em nenhum outro lugar. O que ajudou bastante na minha pesquisa foi o nome dos autores do tal estudo: Dr. Nikolai Gubarev, da Rússia e Dr. Alex Volinsky dos EUA.
O argumento de autoridade já é o primeiro gatilho para que muita gente tome a notícia como verdadeira. “Se os doutores da Rússia e dos Estados Unidos descobriram e publicaram, quem sou eu para falar que isso é fake news?”. Já quem tem mais experiência com esse tipo de material logo pensa: “Será que esses caras existem?”
Hora do Google!
Palavras buscadas: Dr. Alex Volinsky e rope worm. Só com essa única busca, dá para achar todas as alegações supostamente “científicas” feitas sobre os ditos “vermes causadores de autismo”. Se você não tem alguma intimidade com o processo de publicação de trabalhos científicos, pode valer a pena dar uma conferida aqui.
O resultado da busca nos traz uma série de links. O principal é: Development stages of the “rope” human intestinal parasite – arXiv. Que leva para um artigo científico. Ou o que aparenta ser um artigo científico.
Com isso, já respondemos a uma pergunta importante: os autores realmente existem. Não são robôs da internet e nem perfil fake. O autor principal do estudo – Dr. Alex Volinsky dos EUA – é um engenheiro mecânico, não médico ou biólogo. No artigo, ele se declara como pesquisador independente. Sobre o segundo autor, vamos falar um pouco mais pra frente. Os demais autores que aparecem no artigo não serão citados aqui.
Chamo atenção, agora, para a revista em que o artigo foi publicado: arXiv.
O nome da revista é relevante em conjunto com o fato de que, ao ler o trabalho, podemos ver logo na primeira página o seguinte aviso: esse artigo científico não foi revisado pelos pares. Então vou tentar explicar o que significa a revisão pelos pares.
Imagine que seu primo volta de uma festa onde experimentou várias bebidas, e o resultado foi que ele saiu de lá trançando as pernas. Na manhã seguinte – e com um pouco de ressaca – o primo publica um texto no grupo de WhatsApp da família, sem conversar antes com os pais. A história contada é que, na noite anterior, um amigo querido da família derrubou cerveja nele enquanto ele tentava ajudá-lo a entrar num Uber. O primo chega até a ser elogiado pelos outros tios e pela avó, que sempre soube que o neto preferido só faz o bem.
Mas os pais do primo desconfiam que a história é outra e que muita coisa não foi explicada, como a bagunça e o cheiro forte no banheiro, as calças do filho na varanda e o xixi no armário. Mas como não tiveram oportunidade de ler o texto antes dele ser publicado no WhatsApp, o que foi publicado já repercutiu em toda a vizinhança, porque o texto foi replicado em muitos outros grupos.
Os pais do primo seriam os pares e certamente não deixariam o primeiro texto ser publicado. Em artigos científicos, temos um processo muito parecido, mas os “pais-pares” normalmente pedem alterações no texto, e alguns experimentos a mais, para complementar o trabalho e amarrar algumas pontas soltas. Lembrando que os pares também são humanos, ou seja, sujeitos a erros, problemas, corrupção, distorções e todo tipo de problema que você possa imaginar.
Mas então o arXiv é uma revista científica ruim?
NÃO! Ela tem outro propósito, na verdade. O arXiv, originalmente, era um repositório de pré-publicações de artigos científicos sobre física, que depois passou a incluir astronomia, matemática, ciência da computação, ciência não-linear, biologia quantitativa e estatística. Mas não zoologia, ciência médica ou medicina clínica. Por isso que eu não entendo como esse artigo do verme de corda aparece lá.
O processo de publicação de um artigo com revisão pelos pares não é simples, e pode ser demorado. Por isso, autores usam o serviço arXiv para disponibilizar seus manuscritos como “pré-publicações”, antes da revisão por pares, permitindo que outros cientistas vejam, discutam e comentem os resultados imediatamente. Os leitores devem, portanto, estar cientes de que os artigos publicados no arXiv não foram finalizados, podem conter erros ou informações que ainda não foram verificadas pela comunidade científica ou médica.
E por que esse tipo de publicação é importante? Imagine que estamos vivendo um surto de zika pelo Brasil e não temos muita ideia do que esteja acontecendo. A população e o governo querem respostas o mais rápido possível, não podemos esperar todo o processo de publicação para, pelo menos, tentar combater os problemas.
Então, assim que pesquisadores descobrem algo novo sobre o Zika, colocam no bioRxiv (um arXiv específico para biologia) e todos os outros pesquisadores têm acesso aos dados, podem discuti-los e tomar algumas decisões, como a de utilizar um método rápido para detectar o vírus que causa a doença. Foi exatamente isso que aconteceu durante o surto de zika de 2015, aqui no Brasil.
Voltando ao nosso artigo dos supostos dos vermes. Os autores publicaram seus estudos nessa revista, sem revisão por pares. Pessoas que compartilham ou que tiram conclusões sobre esse estudo estão propagando, segundo a definição que demos lá em cima, “false news”. De fato, não é simples interpretar artigos científicos, distinguindo os tipos de publicação.
Vamos, agora, a alguns relatos feitos pelos próprios autores no pré-artigo.
Volinsky e Gubarev nos informam que pessoas com sangue alcalino (pH 8-10) são os mais suscetíveis. Essa informação, por si só, já representa um erro grotesco. Pessoas com um pH sanguíneo de 8-10 não são “suscetíveis” a nada. Elas estão mortas.
“Ao contrário de outros parasitas, os vermes de corda não têm músculos, sistemas nervosos ou órgãos reprodutivos. Eles são frequentemente confundidos com restos em decomposição de outros parasitas, fezes ou revestimento intestinal”, escrevem os autores.
O que eles imaginam serem “vermes” são, na verdade, parte da mucosa intestinal da pessoa. “Mucosa”, define o Dicionário Houaiss, é “membrana umidificada (…) que recobre cavidades internas” do corpo.
“Esses parasitas podem ser expurgados com enemas de eucalipto e suco de limão”, insistem os dois doutores, sem se lembrar de que existem mucosas.
E como os autores sabem tudo isso? Eles não descrevem nenhum tipo de investigação científica capaz de sustentar o tratamento proposto, e muito menos a existência e o desenvolvimento dos tais vermes. Simplesmente jogam alegações sem provas.
Convenientemente, o segundo autor, Gubarev, que trabalha para uma organização de segurança ocupacional na Rússia, tem a patente de uma mistura para enema de eucalipto que, segundo ele mesmo, trata vários parasitas intestinais. Mas aconselha-se cuidado, porque isso deixa feridas abertas no intestino, causando hemorragia interna.
Essa solução de eucalipto segue na mesma linha da tal MMS, outro líquido perigoso (no caso, baseado em cloro) que é oferecido por pessoas mal-intencionadas ou mal informadas a parentes de portadores de autismo.
Ainda assim, há quem prefira a hipótese de que os alertas não passam de esquemas da “indústria farmacêutica que quer esconder a cura”. Por que não considerar a possibilidade de se tratar de um russo charlatão querendo ganhar dinheiro em cima de “fake news” baseadas em ciência de má qualidade, inventando um “verme de corda” imaginário e vendendo o vermífugo?
O artigo dito “científico” termina (depois de mostrar várias fotos de retalhos de mucosa intestinal) com a seguinte frase: “Os resultados da análise de DNA são inconclusivos neste momento. Mais pesquisas são necessárias para identificar o que os vermes da corda são”.
Os autores relatam no artigo que o sequenciamento de DNA das amostras de “vermes” resultaram apenas em material genético humano… O que é consistente com o fato de que o “verme” é, na verdade, um pedaço de uma membrana do corpo humano: parte da mucosa intestinal dos próprios pacientes!
Não contentes com o estrago já feito por esse pré-artigo, os autores criaram um financiamento coletivo para pagar a nova analise de sequenciamento do DNA. Estão pedindo 30 mil dólares. Já conseguiram 9 370, sendo que, hoje, por mil dólares é possível sequenciar o genoma de um um ser humano, por exemplo.
É natural que o surgimento de um caso de transtorno do espectro autista numa família traga perplexidade e muitas dúvidas. Na ausência de respostas científicas claras sobre diagnóstico, causas e prognóstico, a tentação de abraçar qualquer resposta – mesmo que absurda ou perigosa – pode ser forte. Mas o conforto trazido por respostas falsas é apenas imaginário, e esconde riscos enormes.
*Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no estado de São Paulo. Este artigo foi escrito originalmente para a Revista Questão de Ciência.